Recordações do Escrivão Isaías Caminha é mais que um livro. É um tapa na cara. Lima Barreto conta, numa narrativa que por vezes parece mal acabada, a história do mulato Isaías Caminha, filho de um vigário e de uma negra. Na infância, o garoto costumava comparar o pai, um homem ilustrado, com a mãe, uma mulher simples e sofrida. Certo dia decide ir para o Rio de Janeiro, na ânsia de tornar-se um “doutor”. Uma série de infortúnios o leva a trabalhar na redação do jornal O Globo, como contínuo.
O livro nos indaga, logo no início, quem está por trás daquela caricatura de homem. Embora o homem esteja caricaturado, Caminha consegue tirar a venda de nossos olhos e nos faz enxergar a realidade: nua e crua. Descobriremos que esse homem é o mesmo que hoje se sente beneficiado com o sistema de cotas nas universidades, por exemplo. E, surpresa! Descobriremos, ainda, que o Brasil é um país preconceituoso, sim. Plaft. Outro tapa na cara.
E os brasileiros não foram povo. Foram na maior parte do tempo apenas público. Ou pelo menos tratados como tal. Aplaudimos tudo, no passado e no presente. Vivas à Princesa Isabel, a Redentora do Brasil! Vivas ao Programa Fome Zero, que acabará com a fome do povo, mas não ensinará a pescar o peixe! E vivas ao Carnaval, que diverte o nosso povo enquanto os traficantes fazem mais vítimas! Esse mesmo povo, quando pensava não ser mais público, era apenas massa de manobra. Ou o impeachment do presidente colorido foi realmente fruto de nossa vontade e luta?
Se o personagem Isaías Caminha fracassou em algum momento de sua vida ou se não teve o futuro que planejara, não foi só culpa dele. Os americanos brancos diriam que cada um faz da sua vida o que quiser e que é necessário lutar. Isaías lutou até onde pode e se não lutou mais foi porque acabou acreditando que era mesmo inferior e que já havia alcançado tudo o que poderia ter alcançado. Porque foi público e não povo.
Levado aos bastidores das redações, Caminha nos mostra o que é um jornal, como ele funciona e quão grande é a mediocridade das pessoas. Mas não é só isso. Vemos um Brasil dominado pela política do “você sabe com quem está falando?” e da relação público e privado um tanto misturadas. Nas redações, basta falar – e escrever – bonito para conquistar as pessoas. Artigos são feitos por encomenda. Jornalistas são vistos como defensores do povo.
Na verdade, o livro é muito mais que um tapa na cara. Sendo um quase auto-retrato de Lima Barreto – também mulato – “Recordações do Escrivão…” é um grito que estava entalado na garganta do autor. Um grito que teve uma função bem maior do que a panfletária. Foi um grito contra os falsos intelectuais e a favor dos humildes que conseguiam não mais viver, mas sim sobreviver. Lima Barreto não foi apenas público: escreveu, falou, gritou. Foi brasileiro numa época em que chique era ser francês. Brasileiro numa época em que não existia identidade brasileira.
Ver-go-nha. É isso que o livro nos desperta. Vergonha do nosso passado de conquistas absurdas e gloriosas. Do nosso comodismo. De nossa ilusão num país que se diz livre de racismos. De quando entra um negro no ônibus e seguramos nossa bolsa mais rente ao corpo. E, acima de tudo, vergonha de mim, de meu intenso falatório e de minha escassa ação.