Nesse mesmo dia, há alguns anos

Tirei um Aurélio da prateleira. De nada vai me servir.

O embrulho de bolinhas vai de presente para você, Lígia. Dentro, palavras que estão em mim: groselha, batuta, serelepe, ambrosia, babau, aquarela, pupilo, marvelous, flor-de-lis, gatuno, mata-borrão, lengalenga, fado, pandora.

Para quem nasceu na primavera, um pequeno agradinho.

Sobre um puxadinho da Unigazeta

O Reserva Cultural é um cinema super charmoso que fica no mesmo prédio da faculdade onde eu estudo. É também o único cinema que eu conheço que não vende pipoca.

O Reserva Cultural é freqüentado por gente que usa bolsas da Amelie, tênis All Star e óculos de aros grossos. Nas tardes de dias úteis, muitos idosos podem ser encontrados nas salas de projeção. Aos finais de semana, casais bem arrumados costumam gostar de ir ao lugar.

O Reserva Cultural ostenta cartazes de cinema de arte, seja lá o que isso signifique. Foi lá que eu assisti filmes como A Fantástica Fábrica de Chocolate, Ratatouille, Medos privados em lugares públicos e Pequena Miss Sunshine.

O Reserva Cultural tem um ar cult. Lá acontecem exposições de artistas plásticos e debates com diretores de cinema.

O Reserva Cultural tem um café que atende pelo pomposo nome de Café Pain de France, onde você pode encontrar croissants de amêndoas pelo preço módico de 9 reais cada.

O Reserva Cultural paga, às suas faxineiras, um vale-refeição de 6 reais por dia.

(escrever vai fazer isso daqui parar… será?)

Algumas situações nos fazem envelhecer cinco anos. Ou amadurecer cinco.

Chorar no ônibus, moça do vestido cítrico, às vezes é necessário. Eu te entendo.

Chega uma hora em que você não sabe quem é o lobo, quem é o cordeiro. Mais fácil seria se eles viessem com um crachá de identificação e uma pulseira.

Um sim pode mudar tudo. Queria parar de dizer tantos sins.

A saudade do que já passou causa agonia.

Nem sempre eu me reconheço.

Em Alguma Poesia, de Drummond:

Visão de Clarice Lispector

Clarice,
veio de um mistério, partiu para outro.

Ficamos sem saber a essência do mistério.
Ou o mistério não era essencial,
era Clarice viajando nele.

Era Clarice bulindo no fundo mais fundo,
onde a palavra parece encontrar
sua razão de ser, e retratar o homem.

O que Clarice disse, o que Clarice
viveu por nós em forma de história
em forma de sonho de história
em forma de sonho de sonho de história
(no meio havia uma barata
ou um anjo?)
não sabemos repetir nem inventar.
São coisas, são jóias particulares de Clarice
que usamos de empréstimo, ela dona de tudo.

Clarice não foi um lugar-comum,
carteira de identidade, retrato.
De Chirico a pintou? Pois sim.

O mais puro retrato de Clarice
só se pode encontrá-lo atrás da nuvem
que o avião cortou, não se percebe mais.

De Clarice guardamos gestos. Gestos,
tentativas de Clarice sair de Clarice
para ser igual a nós todos
em cortesia, cuidados, providências.
Clarice não saiu, mesmo sorrindo.
Dentro dela
o que havia de salões, escadarias,
tetos fosforescentes, longas estepes,
zimbórios, pontes do Recife em bruma envoltas,
formava um país, o país onde Clarice
vivia, só e ardente, construindo fábulas.

Não podíamos reter Clarice em nosso chão
salpicado de compromissos. Os papéis,
os cumprimentos falavam em agora,
edições, possíveis coquetéis
à beira do abismo.
Levitando acima do abismo Clarice riscava
um sulco rubro e cinza no ar e fascinava.

Fascinava-nos, apenas.
Deixamos para compreendê-la mais tarde.
Mais tarde, um dia… saberemos amar Clarice.

O soluço dela – e no que ele me fez pensar

Apertei o pause e tirei o fone do ouvido. Voltei a cabeça um pouco para o lado dela e então pude ver de onde vinha o tec tec tec. Ela digitava as letras com pressa. Suas mãos tremiam. Estiquei-me um pouco e li na tela do celular: “não precisava vc ter me feito chorar denovo”. Não me contive: fitei seu rosto. Era muito bonita. Cabelos loiros e longos, uma boca vermelha. Usava um vestido comprido e estampado em laranja e em amarelo vivos, um perfeito exemplar do tipo de roupa que só cai bem em pessoas altas e magras. Tinha os olhos verdes. Naquele momento, porém, o que mais  chamava a atenção nela não era o vestido cítrico, nem a boca bem-feita ou muito menos os olhos esverdeados. O que mais denunciava sua presença no ônibus era seu choro. Chorava como se por muito tempo algo estivesse em sua garganta aguardando a hora mais propícia para explodir feito rojão.

A moça me fez experimentar uma agonia enorme durante os  cinqüenta minutos em que estive sentada ao seu lado. Eu quis perguntar o que ou quem poderiam ter feito ela soluçar daquela forma. Não o fiz, é claro. Depois desse sentimento altruísta, me senti como se estivesse invadindo seu espaço. Encolhi-me então um pouco mais na minha parte do banco duplo. Aquela outra metade era dela, que chorasse tudo que quisesse, mas sem o meu olhar invasivo e inquisidor. Depois veio um sentimento egoísta e mesquinho: sorte minha aquilo não estar acontecendo comigo (sim, nós podemos ser malvados quando queremos – e bem mais do que imaginamos).

Por fim, a única coisa que saiu da minha boca foi um “você me dá licença, por favor?” quando meu ponto de descida finalmente chegou. A esse pedido a moça respondeu com um sorriso largo. Amarelo. “Sorria na sala e chore no quarto”, foi o que me aconselharam já há algum tempo.