Tsurada

Naquela época eu ainda participava do Cala-boca já morreu. A ONG estava completando dez anos e, para comemorar, uma festa seria feita no Tendal da Lapa.

A decoração, todinha de tsurus. Conhecida também como grou, a ave, na cultura japonesa, está relacionada à longevidade e o origami, dizem, traz fortuna e saúde. Também dizem que, quando dobramos mil, todos os nossos desejos se realizam.

Para essa festa do CBJM eu fiz cerca de 200 pássaros em três ou quatro dias. Resultado: inflamei um osso da mão.

Nessas férias, sem estágio e sem dinheiro, talvez eu tenha bastante tempo para me dedicar a esse e a outros pequenos antigos prazeres.

Em cada pássaro, um desejo de paz e de felicidade

Ela, paradoxo

Um professor de História da Arte vivia repetindo: “o ser humano é incompleto, inconstante e paradoxal”. Podia viver com tudo isso. Adorava paradoxos! Mas que eles não mudassem a cada estação, porque assim, assim não dava… O dito desdito, com isso não sabia lidar. Com a incompletude, até que se virava. Também era incompleta, talvez a mais incompleta de todas.

Aceitava seus amigos como eles eram. Apontava os defeitos, mas era capaz de viver com eles. Tolerar, não. Tolerar era diferente. Como odiava essa palavrinha…

De seus amigos, exigia apenas uma coisa: a constância. Fosse esperar demais, dela e dos outros.

Intimidade indecorosa

O ritmo caliente esquenta os corpos na boites eróticas. Letreiros luminosos pululam e fazem o convite irrecusável. No ar, cheiro de suor, de pipoca-doce, de esgoto, de gente que acordou à cinco, seis, e que volta para casa naquele fim de tarde paulistano. A poluição visual de cartazes, outdoors e promessas de felicidade amorosa e financeira mal permitem aos recém-chegados o conhecimento da informação crucial: mas-que-lugar-é-esse?

O camelô coloca o CD – pirata, é claro – para tocar. O som assusta os menos precavidos. Em uma mistura de pop latino com guitarras elétricas e acordes amazonais, o que rola mesmo é “o Calypso que chegou para ficar…”. A mulher da banca de ervas medicinais não sabe da matemática e nem do português, mas sim da utilidade de um bom chá de pau-do-tenente ou do Boa Forma. Tudo natural, sem química e sem efeito colateral, garante.

Quando o semáforo fecha, a correria de gente, e carros, e gente com mais carros, e pasmem!, até mesmo de galinhas com gente, deixaria em de cabelo em pé qualquer madame freqüentadora assídua de um, digamos, shopping Iguatemi. Mas não deixa aquelas pessoas, acostumadas com o contato indecente dos corpos naqueles ônibus enfileirados que pegam ali mesmo, em uma viagem para casa que durará, muitas vezes, uma ou duas horas.

Não é difícil ver o trânsito parar, como em todo e qualquer lugar de São Paulo. De repente, peças cadavéricas saem do caminhãozinho estacionado na rua. O cheiro de carne bovina espalha-se pelo local, misturando com o do perfume de lavanda barato e, num átimo, como que para desviar o olhar, vira a cabeça para o alto e lê-se na placa azul, em letras infantis pintadas: Largo da Batata.

Surreal

Cena 1

Monet, 11h30. Não-casperianos, não se assustem! Isso daqui não é um tratado sobre artes plásticas. Monet é só o nome do restaurante da faculdade. Eles vendem comida radioativa. Pra se ter uma idéia, é mais saudável e inteligente comer no McDonalds ou no tio do yakissoba.

“Hummm… esse bolo tá com uma cara boa… olha essa calda…”, e isso ela falou certa de si para sua amiga-da-onça. Nem pra avisar que aquele bolo era da semana passada.

*

Cena 2

Entrevista de estágio. Um jornal de distribuição gratuita com circulação de 35 mil exemplares. A redação fica em Osasco. Pois é. Eu sei. O deitor começa a falar.

“Então, você não é evangélica, né? Porque não dá pra trabalhar com evangélicos…”

“Errr, não…”

“E, assim, politicamente falando, o que você acha do Lula?”

“Acho que isso não faz diferença. Procuro ser imparcial na hora de escrever uma matéria…”

Só falta ele perguntar em quem eu votei, só falta ele perguntar em quem eu votei.

“Em quem você votou?”

“Acredito que o bom jornalismo não revela as preferências eleitorais do jornalista”, isso eu falei certa de que a vaga não seria minha.

*

Cena 3

Ponto de ônibus. Uma menina chorando desesperadamente gritando com alguém no celular. Dois segundos ouvindo a conversa e percebi que esse alguém era seu namorando. Ou melhor, ex-namorado.

“Você nunca me deu atenção, nunca disse que gostava de mim. Se prepara, vou acabar com seu carro. E nem adianta chamar a polícia, porque eu vou fazer um escândalo. Vou tacar muita pedra”, e mais blá blá blá.

*

Poderia ser Salvador Dalí, mas são só algumas pílulas do meu dia. Sim, isso tudo em vinte e quatro horas.

O cheio e o vazio

A expressão “era digna de pena” não poderia ser aplicada para descrevê-la. Não que não fosse. Era, e muito. Mas a expressão tinha uma impropriedade que recaía justamente sobre o fato da dignidade. Se havia uma coisa que não fazia parte de seu ser era a dignidade. Não lembrava quando a perdera – nem se algum dia chegara a ter. Provavelmente tivera sim, ou não seriam todas as crianças dignas?

Odiava que sentissem pena dela. Não sabia o porquê, mas odiava. Aqueles olhinhos marejados e cheios de compaixão mirando aquele ser tão vazio de si e de tudo. Mas também ignorava um outro porquê: Deus, porque sentem pena de mim? E, ignorando tal resposta, seguia vivendo feliz. Os outros, que dela se apiedavam – embora de maneira egoísta e efêmera -, seguiam também, mas com o peso dos olhar triste da mulher igorante de sua existência.

E, todos, a mulher da qual sentiam pena, os que sentiam pena, os que igonoravam a pena, todos seguiam. Como se aquilo fosse normal, como se as coisas fossem realmente daquele jeito, como frames de um filme que, quadro a quadro repete as mesmas cenas, nos quais nem os diálogos mudam, cheios de discurso e vazios de sentido.

Como aquela mulher, pobre mulher, cheia e vazia dela mesma.

Flagelação auto

Era contida. Na dela, muitas vezes ria sem querer rir, falava porque deveria – e não porque desejava – falar. Acatava ordens, pontos de vista e dissimulações. Mas, naquele momento, só teve vontade de dizer: “Mas eu não sou assim”. A garganta tinha um nó. A voz estava embargada. E nada saiu. Nem um “mas”. Como sempre, acatara mais uma vez aquela menção à sua pessoa com uma ordem. Esse ponto de vista havia transformado-se no ponto de vista que tinha dela mesma. De repente, pintara-se também de dissimulada. Poderia ter dito que não, que não era assim, que ela era diferente, que não a conheciam tão bem para que falassem essas coisas. Mas não. Como sempre, calara. E, negando-se, levava adiante. Negaria para sempre suas maneiras e opções, jurando para si que não, que não era assim? Algum dia, pagaria ela pela sua própria alforria? No fundo, ninguém sabia como isso a incomodava. Mas ela também não se dava ao trabalho de explicar.

800 convidados? E nem me chamaram…

Fez o sinal para o ônibus, o que só acabou por ressaltar um relógio que faria inveja ao Fausto Silva.

“Esse ônibus passa nesse endereço?”

“Hum, deixa eu ver… passa sim, em frente ao Residencial Três.”

“E como eu faço? Dá pra pegar outro ônibus?”

“Não. Você desce na portaria e vai a pé… onde você vai? É casa?”

“É, eu vou na casa de um cara pegar uma roupa pra eu ir na festa da Dercy Gonçalves…”

“Ah…”, foi o que saiu da boca do motorista.