Utilidade pública 2.1

O post Utilidade pública 2 levantou dúvidas em duas leitoras do Onomatopéia.

Tem circulado na internet, já há algum tempo, um texto intitulado “Aprender” que, supostamente, teria sido escrito pelo dramaturgo inglês William Shakespeare. Mas não foi Shakespeare quem o escreveu. Já que eu sou uma aspirante a jornalista, estou apurando quem é o verdadeiro autor do texto, uma vez que Autor Desconhecido é um ser que não existe.

Em breve, os leitores vão encontrar uma resposta mais concreta.

Gélida tulipa

Geladeiras normais conservam alface, ovos, latas de cerveja e potes de margarina. A da minha casa guarda um vaso com um bulbo de tulipa. Não, a dieta da minha família não é baseada em pétalas de flores. Tampouco nós  gostamos de comida macrobiótica e ou de bebidas estranhas como suco de alfafa ou de clorofila.

Acontece que, em outubro do ano passado, ganhei um vaso de tulipa de presente. Linda, linda. Porém, com o decorrer dos dias, a planta, não acostumada ao calor dos trópicos, começou a murchar. O escarlate vivo deu lugar a um vermelho apagado. E, como tulipas são tulipas, flores especiais que só, a minha veio com uma etiquetinha do fabricante que dizia que a planta, quando morresse, deveria ter as folhas arrancadas e os bulbos limpos, sendo conservados em um local “fresco e arejado”, ao ar livre, por três meses. Decorrido esse tempo, eles deveriam ser plantados em terra vegetal umedecida e mantidos na geladeira. Meio cética, fiz conforme a tal bula mandava. E não é que deu certo? Depois de seis meses na geladeira, à base de muito gelo e nenhuma luz natural para fotossíntese, a minha tulipa apresenta sinais de vida.

Fosse uma fênix, renasceria das cinzas. É tulipa: brota da morte.

tulipa.jpg

Poste de borracha

Entra no carro, puxa a manivela do banco. Ajeita. Dá a travadinha. Enquadra o mundo de lá de fora no seu retrovisor. Coloca o cinto de segurança. Enfia a chave no contato, pisa fundo na embreagem, engata a primeira, abaixa o freio de mão. Aos poucos, solta a embreagem e acelera. Quando ganhar velocidade, pisa fundo mais uma vez na embreagem, engata a segunda.

Perdi as contas do número de vezes que errei todo esse processo. Como na primeira vez que fiz o exame de direção, só para citar uma. “Quando você fizer sem pensar é porque você já sabe dirigir”, meu pai repetia. Na manhã de hoje, eu não fiz sem pensar. Pelo contrário, prestei mais atenção do que nunca. E deu certo.

Em dez dias, serei uma motorista com permissão para dirigir.

Ufa. Dá um alívio resolver certas pendências.

Agora eu só preciso de uma kombi amarela…

Utilidade pública 2

“… tempo você aprende a diferença, a sutil diferença entre dar a mão e acorrentar uma alma. E você aprende que amar não significa apoiar-se e que companhia nem sempre significa segurança. E começa a aprender que beijos não são contratos e que presentes não são promessas. E começa a aceitar suas derrotas com a cabeça erguida e olhar adiante, com a  graça…”

Isso não é Shakespeare!

Pronto-falei.

Processo de criação da notícia

Entrando pela porta da frente,
Sentiram pena.
Fizeram o que tinha de ser feito:
Perguntaram
Questionaram
Sugeriram.
— Mas como, senhora, sete filhos

O bafo quente encheu-lhes a narina,
A umidade provocou-lhes calafrios,
A desnutrição desnorteou-lhes a cabeça.
Fizeram o que tinha de ser feito:
Anotaram
Fotografaram
Inquiriram.
— Mas aqui papel não funciona não

Um cobertor puído roçou-lhes nos joelhos,
A papa requentada tirou-lhes a vontade,
Uma mão moribunda estendeu-se em suas direções.
Fizeram o que tinha de ser feito:
Contaram
Editaram
Publicaram.
— Vieram uma vez e só

Saindo pela porta dos fundos.
Fazendo o que tinha de ser feito.

“Iu, iu, iu…”

Ficava no ataque. Já naquela época perdera as esperanças de que um dia sua altura excederia os cento e sessenta centímetros. As outras garotas do time enxergavam nessa característica uma grande vantagem. O jogo ela conhecera havia uns três anos, quando mudara de escola. Sua altura permitia agilidade. Apesar de no início ficar entre as últimas a serem escolhidas, podendo sentir nesse ato o desdém na voz de quem apontava para ela, com o tempo   – e algumas horas extras de treino nas noites de sexta –, já se sentia como uma veterana. Não era mais a última a ser escolhida. Mais: era ela quem passara a escalar o time. A prática de esportes tornara-se sua válvula de escape. Levava as outras aulas com facilidade e, para não ganhar fama de CDF, esbaldava-se nos jogos de handball. A fórmula funcionara. Nas partidas, não chegava a ser a mais brilhante, mas também não estava entre as piores. Para ela, isso bastava.

Das aulas do professor de Educação Física – um baixinho que recebera o apelido de Laranja Mecânica, mas que, obviamente, de nada sabia – tirara uma grande conclusão: odiaria para todo o sempre a auto-ajuda. Perdera as contas de quantas vezes ele insistira em provar para ela, por a mais b, que ela tinha tudo para ser uma grande líder. “Você motiva os outros alunos”, dizia. Essas palavras só faziam entediá-la. Ela só queria jogar, suar, correr, ficar descabelada e, de quando em quando, marcar um gol ou outro.

O clímax de sua carreira esportiva se dera em uma tarde ensolarada. Ao marcar um gol, a torcida – que era então composta por todas as salas de seu ano –, comemorara em uníssono:

“Iu, iu, iu, Marília Playmobil”.

O apelido pegou.

A criança no colo

Aproximou-se com passos curtos. Podia-se de longe imaginar claramente o tec-tec-tec de seu arrastar. Os pés rachados e as unhas encardidas denunciavam aquela mãe. Cansada da vida, carregava a criança como um fardo. Revogara de seu direito de ser mulher para tornar-se apenas: mãe. Os cabelos desgrenhados, um soslaio triste e amarelado. E a criança, destoante por inteira de sua mãe. Afinal, não combinava com ela. A mulher não carregava consigo o dom e nem a certeza da maternidade.

A criança no colo da mãe não parecia estar confortável. Olhava assustada para todos que atravessavam seu infantil campo de visão. Seu olhar que não parecia com o de uma criança, mas sim de um adulto já malhado pela vida. Um olhar de quem espera pela morte. A menininha chegara ao cúmulo de observar um rapaz por quinze minutos ininterruptos, fazendo uma pequena pausa apenas para ajeitar a chupeta na boca. Até isso, arrumar uma chupeta, tarefa tão maternal, a criança tinha que fazer sozinha, com toda a sua experiência de seis ou sete meses de vida.

Paradas ali, mãe e filha pareciam carregar toda a tristeza com elas. Em um momento singular de atenção, a mãe deu sinal para o Vila Piauí que chegava. Subiu no ônibus.  

Lorota

 

O poeta pena
Quando cai o pano e o pano cai
Um sorriso por ingresso
Falta assunto, falta acesso
Talento traduzido em cédula
E a cédula tronco é cedúla mãe solteira

O poeta pena
Quando cai o pano e o pano cai
Acordes em oferta
Cordel em promoção
A prosa presa em papel de bala
Música rara em liquidação

E quando o nó cegar
Deixa desatar em nós
Solta a prosa presa
Luz acesa
Já se dorme um sol em mim menor

Eu sinto que sei que sou um tanto bem maior
Eu sinto que sei que sou um tanto bem maior

O palhaço pena
Quando cai o pano e o pano cai
A porcentagem e o verso
Rifa, tarifa e refrão
Talento provado em papel moeda
Poesia metamorfoseada em cifrão

O palhaço pena
Quando cai o pano e o pano cai
Meu museu em obras
Obras em leilão
Atalhos retalhos e sobras
A matemática da arte em papel de pão

E quando o nó cegar
Deixa desatar em nós
Solta a prosa presa
Luz acesa
Já se abre um sol em mim maior

Eu sinto que sei que sou um tanto bem maior
Eu sinto que sei que sou um tanto bem maior

(Pena, d’ O Teatro Mágico)

Em entrevista para a reportagem Sucesso Independente”, da última Veja São Paulo, o editor de música da Playboy disse que a poesia d’ O Teatro Mágico é pobre e que o discurso político é rasteiro.

Aham. Sei.

Classificação etária: livre

Fui a uma das onze salas de cinema que existem em Osasco. O filme, um dos mais esperados do ano: Harry Potter e a Ordem da Fênix. A sala é uma daquelas que possuem mais de 400 lugares, som THX (não me pergunte o que é isso, para mim, “THX” parece nome de hormônio) e muitos, mas muitos adolescentes de férias. Julho é a época do ano em que eles saem à solta. Prova disso é a programação do Kinoplex de Osasco que, por coincidência, é a mesma das salas de projeção do Osasco Plaza Shopping (onde aconteceu o acidente com o gás encanado há treze anos). Filmes como Ratatouille, Quarteto Fantástico e o Surfista Prateado, Shrek Terceiro e Transformers atraem pencas de garotos e garotas com muito hormômio THX.

Fiquei com vontade de gritar “Ô da caravana” para o grupo de mais de quinze amigos que infernizaram as mais de duas horas de projeção de A Ordem da Fênix. Imaginei se eles haviam ido até o cinema em um ônibus fretado, com direito à pipoca e refrigerante, perante uma autorização por escrito dos pais. Agüentei firme. Até mudei de lugar. Com muito pesar, abandonei a galera do fundão e fui me juntar a um outro grupo, mas esse constituído por japoneses. Eles pareciam ter saído de uma convenção de anime.

No ponto alto do filme, já no Ministério da Magia, quando aquilo-que-você-sabe-o-quê acontece com um dos membros da Ordem da Fênix, quando as emoções estão à flor da pele e quando o “Avada Kedavra” é dito, uma adolescente, gritando, intervém:

“Filha da p…”

Todos soltam gargalhadas. Então eu sou chamada de volta à realidade, em um mundo sem varinhas de condão, poções mágicas e maldições imperdoáveis.