A dez minutos de casa

Ele não era meu amigo. Eu não fui um dos 60 alunos da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo que viajou 240 quilômetros até Itobi, como meu irmão, para acompanhar velório e enterro. Mas, passando agora pelo quilômetro 14 da Castelo Branco, foi difícil não sentir dor.

Sem sinais de bebida.

Triste demais.

Duas vidas

Aos sete anos, eu amava ler. Passava horas deitada na cama, lendo, lendo, lendo, sentada na sala, lendo, lendo, lendo. Eu amava sol. Amava brincar de boneca. Amava brigar com os meus irmãos mais novos.

Eu, meu pai e meu irmão do meio

* * *

Estávamos no cruzamento da Dona Veridiana com a Itambé, Higienópolis. 23h10. Com apenas um pé calçado, uma aluna do Mackenzie – mesma universidade onde estudo – trazia uma garota mirradinha, negra, suja, que deveria ter, no máximo, oito anos.

“Meu pai é juiz! O que pode me acontecer, hein?”, bradou antes de desferir um tapa no rosto da menina. A estudante, visivelmente alterada pelo álcool. A criança, dopada, talvez pelo crack, consumido por muitas das crianças que moram na Santa Cecília, bairro vizinho ao campus.

A confusão acontecia em frente ao mercado Pão de Açúcar que fica no cruzamento das duas ruas. A estudante jogou a menina na grade que cerca o estabelecimento.

“Me larga, você tá me machucando!”, pedia a menina.

“Não vou te largar! Você roubou meu notebook, roubou meu Iphone! Seus amigos fugiram, mas você não vai se safar”

Começaram a se passar diversas teorias papelescas e bonitas pela minha cabeça.

“Solta a menina!”, gritei, para depois meus amigos se juntarem a mim.

“Não, ela me roubou”, respondeu a mackenzista.

“Mas você não tem o direito de bater nela!”

Uma mulher, que também observava perplexa, se juntou ao lado da minoria que pedia não. “Você não pode bater nela! Ela é protegida pelo ECA”, explicou.

“A lei existe justamente pra ninguém precisar bater ninguém na rua”, disse eu.

Nada. As pessoas não sabem separar as coisas. Nem tudo é por maldade, nem tudo é por bondade, em ambos os lados.

Minhas amigas começaram a repetir palavras também bonitas, aprendidas durante os quase dois anos do curso de Direito. Teve quem falasse em “autotutela”, em “Estatuto da Criança e do Adolescente”, em “incitamento ao crime”, em “abuso de autoridade”. Tudo no papel.

Teve também quem repetisse frases já conhecidas, como “é por causa de pessoas como vocês que existem crianças que usam drogas”, ou como “queria ver se fosse seu Iphone o roubado”, ou como “tem que bater mesmo! se não concorda, vai embora”.

E eu pensava em outro milhão de coisas, grande parte aprendida em sala de aula. Pensei em “carteirada”, em “você sabe com quem está falando”, em “vida como maior bem jurídico”.

Duas vidas.

Meia hora se passou com a estudante segurando a menina pelo colarinho da camiseta rala.

E ela perguntava pra menina se ela sabia o que era acordar às 5h da matina e ir dormir, todo santo dia, depois da meia-noite, ora pois.

Sobre poder estudar, poder trabalhar, poder dormir as cinco horas, que sejam, numa cama quentinha, tudo isso ela não perguntou.

A pequena – e esse pequena não é de dó, que tenho, sim, confesso, mas porque a pequena era pequenininha mesmo – não parava de chorar.

A polícia chegou e a vitima do roubo, que estuda numa das principais faculdades de Direito do país, pedia chorando: “Policiais, dêem uma dura nela, por favor”.

* * *

E se o Direito não funciona? Está tudo bagunçado demais. Como a gente faz?

* * *

Aos sete anos, eu amava ler, amava o sol, amava brincar de boneca.

Depressa

A Julia tem cinco anos e gosta de rosa. Ana, aos oito, adora quando a mãe faz tranças. Isso eu descobri nos minutinhos que esperava pelo sinal abrir, na Conde de Sarzedas com a Conselheiro Furtado, na Sé, e ouvia o tagarelar das irmãs.

As duas, uma de cada lado, se prendiam às mãos seguras do pai enquanto o sim do verde não vinha para deixá-las mais livres.

Julia se espantou quando viu um homem se arriscar entre os carros para economizar a parada ali na frente da faixa de pedestres. Olhou esbugalhada para o pai, como que se perguntando porque também não faziam o mesmo os três, veja bem.

Ele explicou laconicamente:

“A vida não é depressa”.

Como lição bem dada, as duas repetiram a frase, logo em seguida.

A vida não é depressa.