Um último café

Joana acordou empapada de suor. Olhou no relógio. Cinco horas. Ainda era cedo. Tinha pelo menos mais uma hora. Mudou de posição, mas não conseguia dormir. Levantou-se, foi até a cozinha e completou a canequinha de ágata, já gasta pelo tempo, com a água da torneira. Sorveu o líquido com gana. Voltou para a cama. Não conseguia dormir. Aquela idéia martelava sua cabeça desde a noite anterior. Era preciso, tinha que ver a caixa mais uma vez. Jurava para ela mesma que seria a última.

Puxou o banquinho que se encontrava embaixo de sua cama, arrastando-o até o guarda-roupa. Era um daqueles móveis antigos, com madeira mais clara que formava desenhos de flores. Joana girou a chave, abriu a porta e subiu no banco. Apalpando a última prateleira, puxou uma caixa de papelão empoeirada.

Seu coração estava acelerado. Dentro, pequenas lembrancinhas de festas às quais fora outrora. Tirou primeiramente um sapatinho de plástico, com o salto já bicado pelo tempo. Uma lágrima embaçou a visão. Não podia chorar, não mais uma vez. Enfiou então a mão lá dentro e, ao acaso, encontrou uma foto em sépia. Nela, uma menina de tranças, os pais da menina em trajes démodé. Joana sentiu então uma vontade de esparramar todas aquelas coisas pelo chão do quarto, sentir cada centímetro de lembrança passada e o calor de toda vida ali protegida a sete chaves.

Foi o que fez. Viu uma profusão de retratos, de cartas amareladas não enviadas. Sentiu um cheiro de bolor. Aos 72 anos, Joana também embolorara. No fundo da caixa, encontrou algo que há tempos não via. Uma bandeja de café da manhã de madre pérola, comprada no Mappin. A magazine não existia mais, as pessoas daquelas fotos não existiam mais, aquelas caligrafia firme era agora receosa e insegura de si.

A bandeja nunca chegara a servir o café da manhã pelo qual Joana esperara a vida toda. Não tivera marido, filhos, namorado. Teve então uma idéia. Dirigiu-se à cozinha, preparou um desjejum com um café preto forte. Não era o que esperava, mas servia. Joana estava cansada. Sentou na beirada da cama, mordiscou um pedaço de pão. Quase não descia. Na garganta, um nó se desfazia. Joana só queria dormir. Abriu a gaveta da mesinha de cabeceira, pegou um frasco e misturou o pó branco com o café forte. Não sentiu o gosto.

Quando soa aquela nota

Levou o violão para o colégio. Teria aula no conservatório naquela tarde. Relutante, pediu para que ele afinasse o instrumento. As cordas eram novas e ela, com sua longa carreira de dois meses de estudo, ainda não sabia distinguir um si bemol de um fá sustenido.

Com um sorriso charmoso, ele aceitou o pedido tímido. Apoiou o pé na carteira da sala de aula. As mãos dele seguraram o instrumento. Ela acompanhava cada movimento, cada expiração e inspirou-se. Ele tem jeito para a coisa, pensou. Ela era apaixonada por mãos. E aquelas deslizavam tão jeitosamente, como já haviam deslizado por outros caminhos. Ele segurou o instrumento de maneira preciosa, com o mesmo carinho com que os garotos seguram suas garotas, convidando-as se sentarem em seu colo, no aconchego de seu carinho. Naquele momento, o violão era sua garota – ela sentia isso.

Nos primeiros acordes, sentiu borboletas em seu estômago. O instrumento já afinado, ele não resistiu. Não precisava, não tinha explicação, mas ele quis. Ela também não resistiria mais tarde. Ele, malvado como somente eles às vezes podem ser, sabia qual era o ponto fraco dela. Arranhou uns acordes de Bohemian Rhapsody, mas ainda não era essa. Foi então que ele acertou. Maravilhada, estremeceu. Olhou nos olhos dela e cantarolou baixinho, como um presente: “So, so you think you can tell? Heaven from hell…”.
 

O tênis

Subiu no ônibus com a mochila pendurada em um só ombro. Ofereceu ao cobrador uma nota de vinte reais. A garota recebeu um troco amarrotado e mal-educado, dirigiu-se para o fundo do veículo e sentou-se em um daqueles bancos altos. No assento do lado, um menino de seus dezoito anos. Cabelos cacheados, ar inquieto. Os pés dele balançavam irriquietos em um tênis Adidas, verde, cada qual com duas tarjas creme. Levantou as pernas, apoiando-as sobre o banco da frente. Olhou para o lado. Ela também olhou. Por um lapso de segundo, enrusbeceu. Ela então, com um olhar furtivo, também ergueu as pernas, apoiando-as sobre o banco da frente. Os pés da garota balançavam também impacientes, em um par não com quatro, mas seis faixas creme. E ali, naquele trajeto entre o número 800 da Dr. Arnaldo e o primeiro ponto da Cardeal Arco Verde, duas almas se encontraram. E reconhecerem-se.

“e o fim é belo incerto…”

Entrei no Pompéia 10. Seis meses haviam se passado desde que conhecera aquele ônibus. No caminho para Perdizes – sim , o ônibus chama-se Pompéia, mas meu estágio ficava em Perdizes – , fui pensando na vida. Aliás, acredito eu, meu maior defeito é pensar demais. Mas deixa isso pra lá. Desci na mesma rua de sempre e caminhei até o número 708 da Apinagés. Uma ladeira enorme e movimentada. Para quem não sabe, a Ana Hickmann foi minha vizinha de muro por um semestre. Vez ou outra ela aparecia na varanda do sobradinho, uma casa branca simples com muitas orquídeas penduradas. Ela regava as plantas sempre de calça de moletom e com o cabelo em um rabo-de-cavalo displicente. Pensando bem, deveria ter tirado uma foto e enviado para uma revista de fofoca. Daria uma boa manchete: “Ana cuida de suas plantas no aconchego do lar”. Mas não enviei. Mas porque estou falando dela? Não sei. Sei apenas que lembrei disso agora.

O número 708 estava do mesmo jeito. Adentrei o Estúdio, liguei meu iMac verde (umas das minhas grandes alegrias no início de setembro passado era trabalhar nessa máquina verde). Os mesmos e-mails de sempre: “enlarge your penis” e “make your girl crazy” eram os mais recorrentes. Fiz meu trabalho (sim, hoje eu tinha trabalho!), brinquei com os cachorros, joguei conversa fora.

Despedi-me das pessoas e fui embora.

Ao sair, senti-me diferente: mais madura do que há um semestre e mais segura de mim e de meus ideiais. Uma vontade imensa de escrever, de apurar, de fazer reportagens. Daí lembrei de um verso de Fernando Pessoa. Esse mesmo que vocês pensaram: “Tudo vale a pena se a alma não é pequena”.

Em meio às traças e ao pó, o sorriso de orelha a orelha

Sebo 1

“Moça, tem a Odisséia?”

“Tem esse de capa dura, uma edição rara com a tradução esgotada…”

“Hum, 50 reais… caro, né?”

“Só temos esse.”

Sebo 2

“Moça, tem a Odisséia?”

“Tem essa daqui amarelada. Custa oito reais.”

[Era a mesma edição do Sebo 1]

“Nossa, vocês têm Afundação Roberto Marinho… quanto custa?”

“Oito reais tembém.”

“Hummm [um sorriso contido]. Vou levar os dois. Dezesseis reais, né?”

Sebo 1 – O retorno

“Moço, tem a Poética de Aristóteles?”

“Puxa, esse a gente não tem.”

[Olhar desviado para cima, bem pra cima]

[Alegria]

[Meu Deus, esse livro?]

“Moço, será que eu poderia ver aquele livro ali, A História da Arte, do Gombrich?”

“Pode sim! Esse livro é muito bom…”

“É, eu sei. Vou levar.”

“Obrigada, moço.”

“Obrigado você”

Não, moço, eu que agradeço.