Duas vidas

Aos sete anos, eu amava ler. Passava horas deitada na cama, lendo, lendo, lendo, sentada na sala, lendo, lendo, lendo. Eu amava sol. Amava brincar de boneca. Amava brigar com os meus irmãos mais novos.

Eu, meu pai e meu irmão do meio

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Estávamos no cruzamento da Dona Veridiana com a Itambé, Higienópolis. 23h10. Com apenas um pé calçado, uma aluna do Mackenzie – mesma universidade onde estudo – trazia uma garota mirradinha, negra, suja, que deveria ter, no máximo, oito anos.

“Meu pai é juiz! O que pode me acontecer, hein?”, bradou antes de desferir um tapa no rosto da menina. A estudante, visivelmente alterada pelo álcool. A criança, dopada, talvez pelo crack, consumido por muitas das crianças que moram na Santa Cecília, bairro vizinho ao campus.

A confusão acontecia em frente ao mercado Pão de Açúcar que fica no cruzamento das duas ruas. A estudante jogou a menina na grade que cerca o estabelecimento.

“Me larga, você tá me machucando!”, pedia a menina.

“Não vou te largar! Você roubou meu notebook, roubou meu Iphone! Seus amigos fugiram, mas você não vai se safar”

Começaram a se passar diversas teorias papelescas e bonitas pela minha cabeça.

“Solta a menina!”, gritei, para depois meus amigos se juntarem a mim.

“Não, ela me roubou”, respondeu a mackenzista.

“Mas você não tem o direito de bater nela!”

Uma mulher, que também observava perplexa, se juntou ao lado da minoria que pedia não. “Você não pode bater nela! Ela é protegida pelo ECA”, explicou.

“A lei existe justamente pra ninguém precisar bater ninguém na rua”, disse eu.

Nada. As pessoas não sabem separar as coisas. Nem tudo é por maldade, nem tudo é por bondade, em ambos os lados.

Minhas amigas começaram a repetir palavras também bonitas, aprendidas durante os quase dois anos do curso de Direito. Teve quem falasse em “autotutela”, em “Estatuto da Criança e do Adolescente”, em “incitamento ao crime”, em “abuso de autoridade”. Tudo no papel.

Teve também quem repetisse frases já conhecidas, como “é por causa de pessoas como vocês que existem crianças que usam drogas”, ou como “queria ver se fosse seu Iphone o roubado”, ou como “tem que bater mesmo! se não concorda, vai embora”.

E eu pensava em outro milhão de coisas, grande parte aprendida em sala de aula. Pensei em “carteirada”, em “você sabe com quem está falando”, em “vida como maior bem jurídico”.

Duas vidas.

Meia hora se passou com a estudante segurando a menina pelo colarinho da camiseta rala.

E ela perguntava pra menina se ela sabia o que era acordar às 5h da matina e ir dormir, todo santo dia, depois da meia-noite, ora pois.

Sobre poder estudar, poder trabalhar, poder dormir as cinco horas, que sejam, numa cama quentinha, tudo isso ela não perguntou.

A pequena – e esse pequena não é de dó, que tenho, sim, confesso, mas porque a pequena era pequenininha mesmo – não parava de chorar.

A polícia chegou e a vitima do roubo, que estuda numa das principais faculdades de Direito do país, pedia chorando: “Policiais, dêem uma dura nela, por favor”.

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E se o Direito não funciona? Está tudo bagunçado demais. Como a gente faz?

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Aos sete anos, eu amava ler, amava o sol, amava brincar de boneca.

Suspenso

E pela lei natural dos encontros. Essa palavra não existe. Existe, sim. Para existir, basta ser dita. Eu deixo e recebo um tanto. É nada. Claro que sim, é como o sonho. E passo aos olhos nus. Zubalumi, cabotavo, chomerá. O sonho? É. Ou vestidos de lunetas. É independente, não precisa de mais nada pra existir. Orquídea na piscina, bola de ambrosia, caco inteiro. Não é…. sonho com várias coisas, mas nenhuma delas acontece! Sonho realizado é realidade, deixou de ser sonho. Passado, presente. Participo sendo o mistério do planeta.

Com um T bem grande

O maestro Agenor é de Poços de Caldas, Minas Gerais. Quando rege a Orquestra Sinfônica da cidade, qualquer um nota o empenho e a vontade, mas, sobretudo, a paixão.

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Tive a oportunidade de passar por, digamos, quatro cursos superiores: concluí o de Jornalismo, fui três dias no de Letras, dois no de Ciências Econômicas e estou há pouco menos de dois semestres no de Direito.

O que mais eu gostava em Jornalismo é que quem estava lá estava por amor – o dinheiro nem de longe compensa, o trabalho é duro, a profissão traz menos glamour do que se imagina por aí. Era amor puro, paixão, tesão em falar com a fonte, levar cinco nãos, escrever um texto que será cortado pela metade. Não vejo muito isso no Direito e sinto falta.

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Um amigo sempre me diz que a melhor coisa é acordar numa segunda-feira e pensar “nossa, vou trabalhar no que amo, que gostoso!”.

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O que leva uma pessoa a abandonar o que ama, o que faz feliz, o que preenche? Pelo menos pra mim, a paixão, poucas vezes, foi o caminho mais fácil a ser cumprido.

Mais um dia feliz

Ganhei um bombom de chocolate meio amargo que veio da Itália. Quando desembrulhei o papel laminado, surpresa!, uma figurinha linda veio com o chocolatinho. A mensagem, em 5 línguas, também era fofa: “O amor sabe esperar lá onde a razão desespera”.

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Descobri uma música da Maria Rita tão bonita. É calma de dar sono, mas é bonita. “Calma/ Dê o tempo ao tempo, calma/ alma/ Põe cada coisa em seu lugar// E o dia virá, algum dia virá/ Sem aviso/ então…”. Que voz.

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Um também canceriano com ascendente em peixes me indicou um conto do Caio Fernando Abreu pra ler. E eu, que sempre tive um certo preconceitozinho em relação ao escritor, li. Bonito o texto.

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Comecei a ler um livro da Clarice Lispector. É uma coletânea de textos que ela escreveu em diversas fases da vida: jornalista, menina-moça, estudante de Direito. Aaaaaaiai. Sou suspeita em falar dessa mulher. Como ela diz em uma das entrevistas do livro, “É isso sim. Fico olhando, bobando…”.

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Tudo que preciso pra um dia feliz são as palavras certas.

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L’amore sa sperare quando la ragione già dispera

Love can hope where reason would despair

El amor tiene esperanza allí donde tu razón desespera

L’amour peut espérer là où la raison désespère

Câncer com ascendente em peixes

M. diz:
ai, fico feliz
hj achei um livro na casa de um amigo
sobre o signo de câncer
peguei
e tem uma aprte sobre ascendente
vou te mostrar oq  está escrito no nosso!
Marília diz:
nossa
M. diz:
cÂncer-peixes: nesta combinação aquosa, o perigo é se afogar num mar de emoções e perder de vista todos os sonhos, antes que se convertam em realidade. à nebulosidade interior de peixes, acrescenta-se o senso artístico de câncer. é aconselhável manter o senso prático, evitando que o coração domine a cabeça. . caso contrário, terá dificuldade para se defender dos ataques da vida. pode abraçar um ideal humanitário
Marília diz:
sou eu!
nossa.
M. diz:
é muito a gente, né?
esse mar de emoções

O que é feito do quê

“Tava ouvindo uma música que dizia que as nuvens são feitas de algodão”

Um dia me disseram que as nuvens não eram de algodão. Um dia me disseram que os ventos às vezes erram a direção.

“De quem é essa música?”

“Engenheiros do Hawaii”

E tudo ficou tão claro. Um intervalo na escuridão. Uma estrela de brilho raro. Um disparo para um coração.

“Ai, eu não gosto deles…”

“Mas depois eu pensei… não são as nuvens que são feitas de algodão. Olha o tamanho do algodão! Ele que é feito de nuvem!”

Somos quem podemos ser. Sonhos que podemos ter.

O tamanho dos sonhos, o tamanho da gente. Quem é feito do quê?

Tudo

Quem assistia ao Castelo Rá Tim Bum se lembra do Gato Pintado. Morador da biblioteca, a cada visita da Biba, do Pedro, do Nino e do Zequinha ele tinha uma poesia pra apresentar. Foi assim que eu, aos 7 anos, conheci Cecília Meireles, Manuel Bandeira e Paulo Leminski. Mas um dos poemas que eu mais gostava era “Tudo”, do Arnaldo Antunes:

Todas as coisas
do mundo não
cabem numa
idéia. Mas tu-
do cabe numa
palavra, nesta
palavra tudo.

Conforme as crianças iam lendo os versos, uma animação mostrava um menino que desenhava diversas coisas em uma folha branquinha: era pé, era carro, era cachorro, era Sol. A coisa mais fofa. O Sol do Castelo Rá Tim Bum permanece até hoje no meu imaginário. Tanto que, quando eu penso em Sol, penso em um igualzinho àquele: traços infantis, desenhado com lápis de cor e super pueril.

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É um desses que, sob a legenda o sol voltou, ilustra o mês de março de 2010 da minha agenda.

Os passarinhos do quintal

Desde quando nos mudamos para essa casa, há dez anos, plantamos oito árvores. Adoro quando minha mãe pergunta se já vi os botões de flor no ipê-branco ou se colhi as acerolas bem vermelhinhas. Além disso, bananeiras, limoeiros, abacateiros, pés de laranja e carambola são encontrados em muitos quintais das redondezas. Isso tudo acaba favorecendo a disseminação de sanhaços, bem-te-vis e sabiás-laranjeira pelo bairro. Nas manhãzinhas, lá pelas seis, ir dormir com o canto deles é puro aconchego. Acordar, então, é sentir um “bom dia, mundo!” mais que feliz.

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