O pátio em frente

Era debaixo de uma árvore de flores amarelas que eu gastava os intervalos entre as aulas. Sentadas na grama, eu e mais duas ou três amigas mirávamos o pátio em frente, os alunos, os casaizinhos que iam se formando e se desfazendo com o transcorrer das semanas. Nos invernos, também íamos até lá, mas em busca de sol. Do outro lado, a cena de sempre: gargalhadas boas, All Star’s desfilando coloridos, cabelos mal alisados, pulseiras chacoalhando aos montes. Na primavera, contávamos ainda com a brisa gostosa, com o sol das 16 horas que abraçava aconchegante as tardes estendidas para a fofoca de todo dia. E o pátio sempre com os mesmos grupos, as mesmas histórias de bebedeiras, de cigarros fumados às escondidas, de escapulidas no meio da tarde pra festinha na casa de alguém do alguém do alguém. Quando a sombra bondosa em pleno verão apontava o final do ano, surgia a nostalgia pelo futuro, o medo de não fazer mais parte, as promessas de vou-ficar-aqui-por-você-pra-sempre.

Quase seis anos depois, poucos ficaram.

Ainda assim, quero aprender a deixar quem quiser ir embora ir embora mesmo.

Ensina?

Em grande estilo

A primeira vez que fui ao estádio de futebol eu contava oito meses de idade. Sim, oito meses, porque quando a gente ainda mora na barriga da mãe já é gente de carne e osso: ama, ri, chora, se apaixona e dorme – e como dorme. Pois bem. Mamãe foi ao Pacaembu grávida de mim, junto com papai. E como de arquibancada é bem mais legal, lá foram os dois – ou três – torcer ao lado da Fiel. Na época eu era ainda um projetinho de gente, mas que sabia muito bem o que era se apaixonar. O jogo, eu me lembro bem – ok, não lembro, mas me contam tão direitinho que é como se me lembrasse mesmo – foi um Corinthians e Flamengo. O clássico dos clássicos. Apaixonei. Meus pais contam que, aos 3 anos de idade, eu era mais corintiana que a família toda, esgoelada que só. Sabia de cor o hino, pulava durante os jogos, saía gritando “TIMÃÃÃO” por aí. Super corintiana, maloqueira e sofredora.

Tudo

Quem assistia ao Castelo Rá Tim Bum se lembra do Gato Pintado. Morador da biblioteca, a cada visita da Biba, do Pedro, do Nino e do Zequinha ele tinha uma poesia pra apresentar. Foi assim que eu, aos 7 anos, conheci Cecília Meireles, Manuel Bandeira e Paulo Leminski. Mas um dos poemas que eu mais gostava era “Tudo”, do Arnaldo Antunes:

Todas as coisas
do mundo não
cabem numa
idéia. Mas tu-
do cabe numa
palavra, nesta
palavra tudo.

Conforme as crianças iam lendo os versos, uma animação mostrava um menino que desenhava diversas coisas em uma folha branquinha: era pé, era carro, era cachorro, era Sol. A coisa mais fofa. O Sol do Castelo Rá Tim Bum permanece até hoje no meu imaginário. Tanto que, quando eu penso em Sol, penso em um igualzinho àquele: traços infantis, desenhado com lápis de cor e super pueril.

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É um desses que, sob a legenda o sol voltou, ilustra o mês de março de 2010 da minha agenda.

Anti-pancadaria

Zapeando pelos canais de desenhos, me lembrei de um tempo em que a programação infantil tinha menos chute e mais sutileza.

Tinha Pat and Mat

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… a suavidade do Toki Doki

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…ah! E eu adorava  A minhoquinha que morava na maçã

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Pipi e Cuco era muito fofo…

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…e quando passava Plonsters então? Eu tentava fazer o mesmo com Super Massa…

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Gil & Julie era um dos meus favoritos…

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E, por fim, Fábula das Cores, que dispensa elogios…

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Pedaços

Te reencontrei no desodorante, na música do Cartola que ouvi enquanto tomava banho, na pimenta que arde a comida, no chocolate meio amargo, na camisa listrada da vitrine. Até na lata de bala que ganhei um dia na Augusta e na entrada do show do 12 de junho com a qual, por um acaso, me deparei na caixinha das boas lembranças, você estava. E, passando a pé pelo ponto de ônibus, gritaram um time que fez eu pensar em ti com aperto no peito que, juro, Deus!, não quero mais nessa vida, não. Tropeço em você em cada seriado, em cada teclinha do controle remoto que você furtivamente jogava no meu colo quando alguém se aproximava. A viagem que quero há muito tempo, mesmo que você não esteja lá, também vai ser uma forma de encontrar seu espaço em mim. Vejo você até quando me olho no espelho, assim como a gente faz quando não está olhando pra gente mesmo – a hora do olhar desviando pra dentro: pra alma. Percebeu que os ventos por aqui já estão mudando? Ontem fez uma tarde linda, naquele céu laranja e rosa que não é mais tanto céu de inverno. Veio uma brisa boa, que trouxe à memória finais de tarde de setembro com telefonemas esperados e sorrisos de orelha a orelha pelo resto da noite. Senti a primavera já, embora ainda seja agosto. 7 de agosto. Tive uma primavera inesquecível, que começou mais cedo e com a mesma blusa que o dia de antes de ontem terminou. A blusa que agora tem seu cheiro e é todinha você – nela também vi pistas do seu caminho que em algum momento de sorte coincidiu com o meu. A calça também era a mesma do dia em que mais amei um pedido de desculpa. Apesar de a roupa ser igual, tudo insiste em ser diferente demais. Não tenho mais as pessoas com quem eu costumava contar próximas de mim. O moço do filme falava assim pra garota que ele amava: “Hoje vi quinze pares de olhos, mas meu dia não começou enquanto eu não vi os seus”. Seus olhos sob a luz da lua.

Agora que sei de cor onde te reencontrar, te perdi.

Dizer de cor vem de dizer de coração.

O desconhecido, temi

A hora era chegada. Algo me impelia pra frente, uma força vital e orgânica vinha de dentro. Embora acostumada com o ambiente, úmido e acolhedor, sabia que não poderia mais continuar ali. Caso contrário, acomodada já à situação na qual me encontrava, morreria. Uma vontade e, sobretudo, uma necessidade de seguir impulsionava para uma nova fase. Despedia-me de minha morada confortável e abandonava uma segurança que nunca mais teria. Ia à busca do desconhecido.

Rompia, dessa forma, mais que uma barreira física. Conforme a transpassava, um turbilhão de emoções e de sensações me encontrava desprevinida. Aquela carne não era apenas meu abrigo dos últimos meses. Vez ou outra era possível ouvir uma voz que atravessava a parede e cantarolava em ecos uma canção de carinho e de amor. Ali era morada do come-e-dorme certo de todos os dias, um porto-seguro que não cobrava nada em troca de amparo.

A claridade se fazia cada vez mais forte. Ofuscava os olhos à medida que revelava o nunca antes visto. Não era mais a voz terna de outrora, mas sim lacônicos sussurros que envolviam a atmosfera. Uma segunda carne, diferente da que estava habituada, me puxou com veemência. Passei por camadas de pele, gordura e pêlo. Tudo pegajoso, mas de uma vibração pulsante. Embora a luz agora deslumbrasse os olhos, ainda assim temia.

Depois do meu primeiro choro, que viesse a vida.